Acreditarei em milagres?
Acreditarei em milagres?
Este foi um conto que escrevi há uns anos e foi, inclusivamente, publicado numa coletânea de contos. Como estamos na época natalícia...aqui vai:
De longe, vi-a olhar para a montra daquela loja de brinquedos. Não teria mais de oito anos. Magricela, esfarrapada e despenteada, percebi logo que não poderia entrar naquela casa comercial e comprar o que quereria. Estava acompanhada pela mãe, que estava a falar com uma pessoa! Fiquei especada a ver aquela cena e não consegui tirar os olhos daquela miúda, que tinha já ambas as mãos e o nariz encostados ao vidro da loja, como se lhe quisesse penetrar e pudesse arrancar de lá o objeto do seu desejo. Do sítio onde me encontrava, um pequeno café, sentada junto à janela, assistia a tudo, com alguma pena por aquele pequeno ser, que provavelmente no Natal não teria o que queria, mas o que podia. Talvez comida, já não fosse mau…
Sem retirar os olhos da criança, ouço ao lado um casal de velhotes, que, enternecidos, fazem juras de amor e que garantem que há milagres, como o seu bem-querer!
Acreditarei em milagres?
Neste pensamento solitário, bebendo o meu chocolate quente, neste dia invernoso, ouvindo falar de amor e mirando a pobre criança, reparo que outra criança de igual idade sai da loja com uma maravilhosa boneca de cabelos dourados. Com o entusiasmo de ter o seu brinquedo nas mãos, ao sair em êxtase, embarra na pobre miúda que tinha abandonado o vidro e saltava nas poças de água da chuva que tinha caído… Nisto, a boneca e a gorducha caíram ao chão. O pai apanha a boneca, tentando consolar a filha, que iniciou o choro por ter deixado cair a sua encantadora nena. A magricelita bem olhou para a boneca e ao ajudar a levantar a outra miúda, pegou no objeto do seu desejo, com os olhos cravejados nos fios louros do seu cabelo. O senhor agradeceu à miúda o gesto de auxílio e vendo a boneca suja, entrou de novo na loja…
De repente, começa a nevar e eu sinto um certo aquecer de coração. Como é bonita esta altura do ano com neve! No meu sorriso contido, começo a sentir uma espécie de conforto e, nesse preciso momento, pensando em me levantar para poder sair para a rua e apanhar com os flocos mesmo em cheio no rosto, vejo o pai, a sair da loja, com a sua filha que tinha duas bonecas nas mãos. A bolachudita deu a boneca caída anteriormente à miúda que a tinha ajudado a levantar. A criança olhou para a mãe sem perceber se o que estava a acontecer era mesmo verdade. A mãe, humilde, agradeceu e anuiu em aceitar o brinquedo. Despediram-se. De longe, no meu aconchego, vi o deslumbramento desta pequena miúda ao agarrar a sua boneca nova, suja, mas nova e quase tenho a certeza de que rolava na sua cara uma lágrima grossa. Tenho a certeza de que dos meus olhos brotaram duas lágrimas também.
Afinal, até pode haver milagres!
Saí para a rua, atravessei a estrada e raspei ao de leve na magricela e desejei-lhe baixinho: “Feliz Natal!”
